A diferentes dinâmicas do processo de gentrificação na cidade do Rio de Janeiro e a influência dos megaeventos na reordenação dos espaços da cidade.

Nicholas Leite Abdalla
Graduando no curso de Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Ouro Preto


Resumo: O presente artigo pretende abordar as diferentes formas de gentrificação que vem ocorrendo na cidade do Rio de Janeiro, relacionando-as aos megaeventos e os diferentes efeitos na paisagem da cidade.

Palavras chave: gentrificação; megaeventos; diferenciação entre processos;


Introdução
Atualmente os estudos sobre os processos de gentrificação e suas implicações na reorganização e produção do espaço urbano têm, gradativamente ganhado atenção tanto no meio acadêmico quanto nos diversos meios de comunicação de massa. O assunto não mais se restringe à especialistas da área. Por conta dessa difusão o termo gentrificação vem sendo amplamente utilizado por qualquer um que se disponha a falar dos fenômenos contemporâneos de produção, alteração e remodelação dos espaços da cidade, principalmente das metrópoles. A popularização do conceito e sua utilização generalizada para explicar superficialmente todas as relação das novas mudanças nas cidades com a exclusão socioespacial da classe baixa pode dificultar o debate e ofuscar a real contribuição que esse termo oferece ao diferentes campos do conhecimento.

A expressão gentrificação deriva do substantivo inglês gentry, que designa indivíduos ou grupos “abastados”, “de origem nobre”. Os gentry faziam parte da aristocracia inglesa da época e o termo era empregado por especialistas quando se queria falar sobre lugares da cidade, inicialmente populares, que se elitizaram ou enobreceram. Por exemplo, quando houve uma onda de invasão elitista na área central de Londres e a região, que era caracterizada por trabalhadores e proletariado, foi tomada pela classe média e alta resultando na reordenação socioeconômica e na alteração do padrão cultural daquela área.

Na década de 1980 o conceito se difundiu. O termo “gentrificação” já não se restringia aos meios acadêmicos. A expressão era utilizada para indicar experiências geográficas e socioespaciais com características semelhantes ao redor do globo, se configurando como uma possível explicação ao caos urbano dentro das grandes cidades. Esse tipo de argumentação limitava a complexidade de relações que o termo incita.

Conforme os estudos acerca do assunto vem se aprofundando pesquisadores de diferentes áreas se dedicam a desdobrar as causas, consequências e condicionantes responsáveis por tal efeito contemporâneo. Hoje, muitos fatores confluem para que as análises acerca das “ações gentrificadoras” nos grandes centros urbanos estejam intrinsecamente relacionadas ao sistema capitalista (financeiro) e suas ordens globais.

No presente artigo coloca-se em evidência as diferenciações feita por Christopher Gaffney, doutor em Geografia pela University of Texas at Austin. Gaffney têm larga experiência no campo do Planejamento Urbano, atualmente mora no Rio de Janeiro e dedica-se a estudar os fenômenos de gentrificação na metrópole, enfatizando suas relações com os megaenventos. Na 15ª edição da revista eletrônica Metropolis (ano 4, dezembro de 2013) o geógrafo explica alguns processos gerias de gentrificação, defendendo uma análise mais profunda acerca do tema. O autor apresenta quatro casos na cidade do Rio, diferenciando os atores e agentes, causas e consequências por trás das ações gentrificadoras. Analisarei dois dentre os quatro casos, o primeiro no bairro do Flamengo e o segundo na Barra da Tijuca.


A gentrificação da classe média no bairro do Flamengo e o efeito cascata resultante.

Há um consenso nas análises sobre gentrificação que define esse processo como sendo “o deslocamento de um grupo social por outro em melhores condições econômicas, com diferentes padrões culturais” (Gaffney, 2013). Porém também existe a compreensão de que gentrificação compreende uma série de ações inter-relaciondas em formação contínua.

Segundo Mendes(2011) gentrificação inclui:

1) Reorganização da geografia urbana com a substituição de um grupo por outro;
2) Reorganização espacial de indivíduos com de­terminados estilos de vida e características culturais;
3) Transformação do ambiente construído com a criação de novos serviços e requalificação residencial que pressupõe melhoramentos;
4) Alteração de leis de zoneamento que permi­ta um aumento no valor dos imóveis, aumento da densidade populacional e uma mudança no perfil socioeconômico.

A partir desses fatores elencados acima conseguimos compreender melhor a situação das atuais transformações urbanas na cidade do Rio. O primeiro caso tratado pelo autor acontece na região do Flamengo, localizada na Zona Sul da cidade. O Flamengo foi um dos primeiros bairros a se verticalizar, na década de 1940, e se tornou uma área tradicional constituída majoritariamente pela classe média/alta e pequenos comerciantes. Por conta dos megaeventos (Mundial de Clubes de 2014 e Olimpíadas de 2016) a Zona Sul, caracterizada por ser uma zona abastada e acomodada, foi afetada pelas políticas neoliberais que visam a dinâmica dos fluxos de dinheiro e bens, a aceleração de informação, a exploração de atividades turísticas entre outras práticas, conferindo a integração da cidade aos “circuitos globais do capital”.

A partir dessas políticas globais houve o aumento no preço do aluguel causado pela especulação imobiliária nas áreas residenciais do Flamengo. Gaffney relata o caso do Edifício Morro da Viúva, onde morava. Esse prédio residencial é um dos mais tradicionais do bairro e pertencia ao Clube de Regatas Flamengo (CRF). Em 2011, por influência do presidente do clube e do novo Plano Diretor (que recriou as diretrizes de zoneamento da cidade), o edifício entrou no circuito dos prédios que iriam ser revertidos em hotéis. A empresa EBX, de Eike Batista, ficou responsável pela obra.

Desde então iniciou-se um processo de retirada dos residentes do Edifício Morro da Viúva. Pelo fato do edifício ser antigo e um tanto antiquado, o preço do aluguel estava abaixo da média para o bairro. Desse modo os moradoras que não tiveram condições de se mudar para prédios de padrão mais elevado foram obrigados a procurar lugares distantes dali, em regiões menos centrais, como a Tijuca. Em efeito cascata, as regiões que receberam essas pessoas de classe média também foram afetadas pela especulação. Assim como os apartamentos residenciais, as propriedades comerciais também sofreram com o aumento do aluguel, ocasionando o aumento dos preços de produtos e consequentemente do custo de vida em geral.

Nessa perspectiva conseguimos traçar uma linha de raciocínio simples e eficiente à nossa compreensão: a prefeitura incentiva a construção de hotéis; esses hotéis servem aos turistas que iram aquecer a economia da cidade (mais intensamente nos períodos dos megaeventos); as construtoras e empreiteiras privadas se fortalecem; os residentes do local são espoliados de suas moradias e obrigados a se retirar e consequentemente aumenta-se o custo de vida nas diversas regiões afetadas. Todo esse processo caracteriza a gentrificação e o “efeito dominó” resultante. Esse caso demonstra como o poder público junto às empresas privadas (construtora EBX nesse caso) reorganizam as áreas urbanas sem qualquer restrição ou impedimento e conferem ao mercado imobiliário amplos poderes de decisão dentro da cidade.


O processo de new build gentrification no bairro da Barra Tijuca.

O segundo caso de gentrificação acontece no bairro Barra da Tijuca, localizado na Zona Oeste da cidade, região que atualmente mais cresce na cidade. Devido à confluência de interesses políticos e econômicos do mercado imobiliário e aos projetos de infraestrutura para os megaeventos a região tem sofrido, desde de os Jogo Pan-Americanos, gentricação de novas construções (new build gentrification).

A paisagem do bairro é marcada por grandes edifícios residenciais de alto padrão, condomínios fechados, shoppings centers e alguns centros comerciais que são conectados ao resto da cidade por um amplo sistema rodoviário. A Barra da Tijuca apresenta grandes manchas vazias entre as áreas construídas e diversos muros de segurança que delimitam as áreas residenciais privadas. A dependência do carro e o padrão residencial local indicam uma predominância de um perfil socioeconômico homogêneo, limitando as classes que podem morar naquela região da cidade.

No ano de 2007 o bairro recebeu a construção da Vila dos Atletas para os Jogos Pan-Americanos. A obra foi construída próxima ao Canal da Favela do Anil. Nos meses que antecederam os Jogos as famílias que moravam no Canal foram removidas forçosamente dali e a comunidade foi parcialmente destruída. Logo após os Jogos os apartamentos construídos para abrigar os atletas foram rapidamente vendidos ao mercado, porém eram inadequados e segregados da cidade o que ocasionou o abandono e vendas prejudiciais aos proprietários.

“De acordo com o Subprocurador-Geral de Justiça do estado do Rio de Janeiro, “as ações do governo foram covardes... eles disseram que não aconteceria uma remoção forçada e mesmo assim foram lá e fizeram”” (Gaffney, 2013).

Após dois meses da escolha do Rio de Janeiro para sediar as Olimpíadas de 2016 e o anúncio por parte da prefeitura de que 119 favelas iriam ser destruídas para efetuação das obras olímpicas, o bairro novamente entrou no circuito de remoções forçadas. Nenhum plano de reassentamento tinha sido discutido e os preços que o município se propôs a pagar pelos lotes dessas favelas poderiam configurar um assalto a mão armada e um crime contra os direitos humanos.

Muitas manifestações ocorreram com o intuito de resistir às remoções, quase todas não obtiveram êxito. Um caso interessante é o da Comunidade Vila Autódromo, que também estava na lista de “realocações”. A Vila Autódromo é um assentamento de pescadores, que se iniciou na década de 1960, já passou por várias resistências frente à iniciativas de remoção e atualmente está batendo de frente com os anseios olímpicos. A maioria dos moradores são assegurados de suas propriedades através de documentos legais que legitimam suas moradias naquele local. A Associação de moradores é grande e consolidada. Por conta das investidas do poder público à retirada das famílias, desde 2011 os moradores da Vila Autódromo desenvolvem um plano urbanístico alternativo com a finalidade de integrar a comunidade à cidade formal. Com o auxílio de estudantes de arquitetura, urbanismo, geografia, serviço social, economia, entre outros, a população local criou um Plano Popular para desenvolvimento urbano, econômico, social e cultural naquela área. O Plano Popular comprova que a região não deve ser destruída e que não há motivos convincentes para que a área seja tomada pelo poder público (e futuramente pelo mercado imobiliário).


Conclusão

Para Gaffney: “Gentrificação é uma expressão das relações de poder localizada com repercussões globais, inter­nacionais, nacionais e translocais. Algumas vezes é fácil perceber as manifestações físicas das gen­trificações quando elas ocorrem. Menos visíveis são as dificuldades das pessoas para permanecer onde elas estão ou o trauma psicológico da in­segurança da propriedade residencial.” (Gaffney, 2013).

Nos dois casos apresentados percebemos que o processo de gentrificação é complexo pois suas diferentes causa e efeitos, assim como os agentes envolvidos, configuram um fenômeno urbano não homogêneo, agindo em diferentes áreas da cidade, não se restringindo às áreas centrais.

No caso do bairro do Flamengo vimos que não é apenas a classe baixa e menos favorecida que sofre com os efeitos da especulação imobiliária e das transformações da cidade para os megaeventos. A desapropriação do Edifício Morro da Viúva atingiu a classe média e resultou em um aumento do custo de vida não só no Flamengo, mas também na Barra da Tijuca.

Este último também sofreu e vem sofrendo os efeitos da gentrificação. No caso da Tijuca as novas construções residenciais e obras de transporte urbano vêm progressivamente removendo e destruindo comunidades inteiras de seus locais de origem, sem sequer discutir políticas de reassentamento. O Estado nesse caso têm papel fundamental. O poder público legitima as remoções e capitaneia as obras de infraestrutura para as Olímpiadas.

Mercado imobiliário, prefeituras, construtoras, empreiteiras e investidores privados configuram o quadro dos principais agentes da gentrificação no Rio de Janeiro, cidade que hoje faz parte do circuito de territórios globais e que segue as ordens das políticas neoliberais mundiais, muitas vezes passando por cima da legislação e dos direitos humanos.


Referências Bibliográficas
Associação de Moradores e Pescadores da Vila Autódromo. (2012). Plano Popular da Vila Autódromo.
Link:http://comitepopulario.files.wordpress.com/2012/08/planopopularvilaautodromo.pdf
PEREIRA, A. (2014). A gentrificação e a hipótese do diferencial de renda: limites explicativos e diálogos possíveis. São Paulo: Cad. Metrop, v. 16, n. 32, pp. 307-328, nov 2014.
Link:http://www.cadernosmetropole.net/download/cm_artigos/cm32_294.pdf
GAFFNEY, C. (2013). Forjando os anéis: a paisagem pré-Olímpica no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: revista eletrônica metropolis nº 15, ano 4, dezembro de 2013.
Link: http://www.emetropolis.net/download/edicoes/emetropolis_n15.pdf
MENDES, L. (2011). Cidade pós-moderna, gentrifica­ção e a produção social do espaço fragmentado [The post-modern city, gentrification and the so­cial production of fragmented space]. Cadernos Metropolis, 13(26), 473–495.



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